segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Eleições, mídia, mentiras e nós, eleitores


O primeiro dia de 2011 marcará um fato importantíssimo na história do Brasil: a primeira vez em que uma mulher assume o comando da república. A eleição de Dilma Roussef é uma ruptura no modelo que, por cinco séculos, impôs sempre machos brancos no comando de milhões de brasileiros. Talvez a única exceção seja a espanhola Ana Pimentel, de Salamanca, esposa de Martim Afonso de Souza que, em 1544 ou 1546, governando a colônia, revogou a proibição feita por seu marido de colonos ou estrangeiros, partindo do litoral, embrenharem-se pelos sertões da terra pouco conhecida do Brasil, e foi a responsável pela introdução da cultura de cana de açúcar em nosso país. No processo – campanha - que levou Dilma Roussef a ser preferida pela maioria da população brasileira, pudemos acompanhar uma infinidade de situações que permitirão aos futurólogos compor panoramas possíveis para o futuro do país – e para as próximas eleições. No centro das análises está o comportamento do eleitorado, havendo destaque para as manifestações que alimentaram as bases de dados dos veículos de comunicação que permitem a postagem de comentários do público e, também, as redes sociais. Mas o comportamento dos políticos e dos meios de comunicação também devem ser analisados com atenção.

Os profissionais de marketing sabem que o período de quatro anos tanto pode ser curto quanto pode ser longo para que ocorram mudanças no comportamento da sociedade. Os fatos e as circunstâncias históricas são imprevisíveis. Ainda assim, de posse das informações fundamentais e a partir de análises razoáveis, é possível identificar algumas tendências, tanto gerais quanto particulares, que possibilitarão formular estratégias políticas e sociais com a finalidade de intervir no destino de toda a sociedade. Algumas variáveis, no entanto, permanecerão fora dessas análises, dada a sua imprevisibilidade. As ações humanas transcendem o território da lógica, bem como alguns fenômenos culturais que emergem de uma hora para a outra. A condição de previsibilidade utilizando métodos racionais muitas vezes está em desvantagem em relação à pura adivinhação. Não porque os métodos científicos não sejam válidos, mas porque o alcance do nosso entendimento é limitado.

No debate televisivo da Rede Band que acompanhava a apuração dos resultados das eleições, no domingo, 31 de outubro, uma questão que provocou um debate apaixonado dizia respeito à precisão das pesquisas, ou melhor, à capacidade de previsibilidade dos institutos de pesquisas e o poder de influência de sua divulgação sobre o eleitorado. Debatiam o senador Álvaro Dias, do PSDB, o deputado João Paulo Cunha, do PT, é o sociólogo e geógrafo Demétrio Magnoli, provocados pelo jornalista Ricardo Boechat. A certa altura, já com 73% dos votos apurados, veio a primeira parcial da apuração que mostrava uma diferença de aproximadamente 5 pontos percentuais entre os candidatos, tendo Dilma a vantagem. Sem dar-se conta de que a apuração acelerada no sistema de voto eletrônico ainda apresentaria uma variável importante, o senador deduziu que a proporção de votos entre os candidatos se manteria naquele patamar até o final.  Convicto, explicitou sua opinião de que as pesquisas e os institutos de opinião prejudicaram o candidato do seu partido e, por isso, deveriam estar sujeitos a regras rígidas e certos impedimentos, no futuro, para evitar que os números previstos induzam o eleitor a votar no candidato que está na dianteira. Nas entrelinhas do seu discurso, a acusação de que os institutos, todos, pareciam estar engajados na campanha de Dilma Roussef, pois previam uma diferença de 10 a 12 pontos percentuais de vantagem para Dilma, o que, para ele, era um exagero absurdo e injustificável. Não percebeu, o senador, que a diferença de horário entre os estados inviabilizava a sua avaliação, posto que a apuração do sul e sudeste, regiões onde Serra teve seu melhor aproveitamento, estava adiantada em uma ou duas horas em relação às outras regiões do país. Da mesma forma, o candidato a vice na chapa tucana, Índio da Costa, no mesmo dia, ao votar, afirmou que as pesquisas estariam erradas e que a diferença seria muito menor, estando indefinido quem seria o próximo presidente do Brasil. 

Álvaro Dias estava enganado, analisou o todo por uma parte, como se o todo resultasse de uma homogeneidade fantástica. Índio mentia, esperando que a sua entrevista pudesse reverter o que os institutos prediziam, seguindo uma estratégia já usada e abusada pelo presidente do PSDB Sérgio Guerra, durante a campanha. Conforme a apuração evoluía, se tornava visível o desconforto de Álvaro Dias, que viu a diferença entre os candidatos alcançar o patamar de 11,5%, a favor de Dilma, confirmando as pesquisas, uma vez que, embora esta diferença esteja ligeiramente abaixo do previsto pela maioria dos institutos, encontra-se dentro da margem de erro que havia sido divulgada às vésperas da eleição. O erro de avaliação é inevitável, muitas vezes; tanto por nossas limitações quanto por nosso desejo de que nossas escolhas e nossas esperanças se concretizem. Álvaro Dias, deixando o seu cinismo costumeiro, me pareceu humano; defendendo suas opiniões e esperanças, faz política. Índio da Costa e Sérgio Guerra, por outro lado, optaram pela mentira, pela simulação, na intenção de induzir o eleitor a acreditar numa farsa que contradizia o que os institutos de pesquisa apresentavam. É claro que Álvaro Dias não proporia qualquer tipo de sanção contra o “Instituto Índio-Guerra de Pesquisa Eleitoral”, mas creio que é neste tipo de “instituto” que o Tribunal Superior Eleitoral deve refletir sobre a possibilidade de aplicação de maiores rigores legais.

É nítido, para a maior parte da população, que esta campanha foi a mais podre da nossa história. Outras campanhas também o foram, mas esta é mais grave porque retoma experiências do passado que não condizem com o nível de civilização que se espera para o século XXI. A mentira, a farsa, a delação, a acusação, a difamação, a calúnia e a manipulação ideológica chegaram a níveis que revigoram práticas passadas da política que atestam o atraso moral e intelectual da política partidária na sua totalidade. Uma campanha feita sem propostas concretas de solução dos problemas que importam para a nação, ficando totalmente ausentes questões importantíssimas relacionadas à cultura ou aos povos indígenas, por exemplo. A educação, que se apresentou como prioridade dos candidatos, ficou resumida a uma educação voltada para a capacitação de seres humanos destinados à produção material de bens, com propostas de escolas técnicas que formam mão de obra para a indústria, para os serviços e para o comércio, como gado, excessivamente devotadas a uma visão tecnocrata de sociedade, quase orwelliana, ou a um passo dela. Não se falou de uma educação voltada para a cidadania, para a formação de uma juventude que precisará construir um mundo democrático, com direitos iguais, respeito às diferenças e possibilidade de acesso aos recursos materiais, intelectuais e éticos que sustentam uma estrutura complexa como a civilização. Uma campanha que não teve o respeito como prática, mas que instrumentalizou a degeneração moral para a tentativa de destruição integral do adversário. Propaganda para os meus e anti-propaganda para os seus – Hitler e Stalin; para os amigos o céu, para os inimigos o inferno - Inquisição; para a minha equipe os louros, para os adversários a boca dos leões – Octavius Augustus e Nero. A política brasileira está com os dois pés enfiados no passado mais sórdido da história. Ainda assim, haverá quem julgue essa condição espúria natural, normal.

Essa campanha reavivou também ódios e preconceitos que estavam escondidos atrás da cortina moral das classes menos miseráveis. Sim, menos miseráveis porque a miséria não se resume às condições financeiras de um indivíduo ou de um grupo; a miséria intelectual, a miséria ética e a miséria afetiva estão mais disseminadas e intensas na sociedade industrial ou pós-industrial do que o dinheiro. Demonstrações de racismo voltaram à tona com uma contundência inesperada. A quantidade de postagens contra nordestinos misturava a insatisfação com a eleição do palhaço Tiririca com a “bolsa-esmola” para os “baianos vagabundos”. A velha política paulista da década de 1930, que se preocupava com a entrada de negros e nordestinos no estado, tentando a todo custo evitar o “escurecimento da pele” da população, se manifestou agora com parte da classe média opinando que “esses baianos precisam ir embora de São Paulo”.

Mensagens orientando o eleitor a não votar em Dilma por causa de declarações pessoais a respeito de aborto, foram fartamente difundidas, endossadas e potencializadas por religiosos que se mostram merecedores de pouca credibilidade, posto que a fé por vezes vira abrigo seguro para a mentira e para o erro. Outras opiniões contrárias a Dilma se justificam por seu passado de militante de movimentos armados que durante a ditadura militar combatiam o Golpe de 64 na clandestinidade. Mensagens difundidas pela internet, em vídeos ou textos, dão a impressão de que o Brasil sob o regime militar era uma espécie de Jardim do Éden que guerrilheiros como Dilma e José Dirceu destruíram. Ora, José Serra, FHC, Aloísio Nunes e outros tantos também agiram e reagiram contra o regime militar. Sobreviveram. Mas há uma diferença de postura entre o PSDB e o PT: FHC renegou inclusive os livros que escreveu quando se exercitava à esquerda da política brasileira, no que parece ter sido seguido por seus confrades de partido, hoje irmanados com os filhotes que deram suporte civil à ditadura dos generais. De outro lado, os seguidores de Lula mantêm o orgulho discreto de quem lutou contra a ditadura. Sobreviveram. Alguns, atualmente, são inclusive parecidos com a burguesia peessedebista, nos métodos e nas ambições. Dá para compreender os casos de corrupção e desvio de dinheiro que envolve muitos petistas, porque o partido acolheu gente de todas as tendências, políticas e morais. Mas ainda é intrigante ver um partido que já se disse “de esquerda”, o PSDB, compactuar com um partido que esteve por duas décadas apoiando as restrições de liberdade de expressão e de opinião, o Democratas (antiga ARENA).

Por fim, é preciso refletir um pouco sobre os meios de comunicação. Ainda não conheço análises mais valiosas para entender o funcionamento dos meios de comunicação que rebatam com segurança pontos de vista como os de Jean Baudrillard, Umberto Eco, Octavio Ianni ou Pierre Bourdieu, por exemplo. Minha própria experiência, como profissional de comunicação, me fornece as bases que me levam a concordar com as teses desses filósofos que se ocuparam com a análise da área em que atuo. A mídia é uma parte importante da estrutura que mantém a sociedade mais ou menos coesa. Assurbanipal pode ser o inaugurador da história da mídia; ele é o primeiro rei a utilizar o poder da comunicação como instrumento político nos moldes em que hoje entendemos esta relação. Ele a usou não apenas como instrumento administrativo, mas como arma de conquista.

A propaganda política é um prato cheio para os especialistas de diversas áreas. Tudo pode se dizer a respeito de propaganda política, exceto que ela tenha uma relação estreita com a realidade. É à mentira que se devem os grandes êxitos da propaganda política – vide Goebbels, George W. Bush, Salazar, etc. Raramente a mentira dos publicitários políticos deixa de influenciar os grandes veículos de comunicação. Há, nesta associação, pressões e interesses que são maiores do que a verdade. A mentira é um instrumento capaz de fazer nações inteiras se sensibilizarem a ponto de apoiar políticas criminosas, como as faxinas étnicas, as guerras religiosas e a manutenção do poder das classes hegemônicas. Os efeitos nocivos da propaganda política e seus agentes são claros e visíveis nos países mais miseráveis do planeta, e também nos mais ricos. A associação da mentira com a comunicação é um câncer que corrói internamente as estruturas de sociedades que caminham na mais perfeita direção da deterioração social, econômica, cultural e humana. Não existe país civilizado, verdadeiramente civilizado, que tolere a dependência da informação, que é um bem público, em relação às instâncias empresariais ou políticas do país. Os meios de comunicação precisam ser independentes; sem essa independência e sem o exercício ético das profissões que lhes dão vida, a história se torna uma ficção perigosa e danosa. Mas o modelo industrial de imprensa que abastece a nossa sociedade de notícias sempre dependeu do empresariado, seus anunciantes, e da classe publicitária, os intermediários. Os governantes também são anunciantes; e têm seus intermediários fazendo a ponte com os veículos de comunicação. As relações entre estas três instâncias – governo, intermediários e veículos de comunicação -, apesar de serem normalmente cordiais, tendem a ser assimétricas: quem detém o que é mais valioso – influência - tem maior poder. E mais dinheiro. Fora desse círculo vicioso e viciante do poder, a sociedade mal informada responde às informações: um escândalo aqui e outro ali – em alguns casos, arranjados para beneficiar ou prejudicar um político, um empresário, uma figura pública ou um anônimo; um novo ídolo do futebol ou das artes – normalmente financiados por capitalistas que atuam nas sombras do esporte ou do showbiz; um cacique político que emerge num partido – normalmente um capitalista que detém tanto poder econômico que é capaz de conseguir dinheiro para a sua eleição; etc. As notícias, mesmo quando frescas, transpiram suas intenções. Só quem é capaz de ler essas transpirações poderá suspeitar da realidade, porque como informa Morpheus, em The Matrix, parafraseando Baudrillard, vivemos uma realidade virtual no “deserto do real”, mas de corpo e alma. Os meios de comunicação são geradores e suportes, ao mesmo tempo,  da “Matrix” dos irmãos Wachowski, são o “cavalo incorporador” do obscuro Príncipe Eletrônico de Octavio Ianni, presentificam a Irrealidade Cotidiana de Umberto Eco, abrigam milhares dos insetos de Kafka, são submundos onde Bourdieu encontrou o fantasma que assombrava George Orwell, e são a usina de compostagem cujo triturador principal é o “buraco negro” apontado por Baudrillard.

Esse texto poderia se extender muito mais, mas a internet é, caracteristicamente, a mídia dos leitores preguiçosos, das pessoas que formam rapidamente uma opinião sem precisar de muitas informações. O leitor padrão da internet não chegará até aqui, deve ter parado no primeiro parágrafo. Outra hora eu retomo essa conversa e de como os robôs utilizados pelo PSDB enviaram milhares de notícias e comentários por meio das redes sociais, segundo um comentário feito por uma pessoa que trabalhou na campanha de Serra. Antes de comentar, preciso de informações que me assegurem de que isso é verdade.