segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Credibilidade e ética

A atual campanha eleitoral está deixando um rastro de destruição na reputação de muitas pessoas. A forma como  a imprensa lida com os candidatos é, declaradamente, parcial. A falta de isenção e o tratamento assimétrico por parte da imprensa não é crime, nem é ético. Parte da imprensa tucanou de vez. Saiu do muro.

Qualquer ser humano que se envolva com política precisa estar preparado para o pior. Precisa ter sangue frio, saber se esquivar, negociar, mentir. A política é uma arte. A comunicação também. Talvez por isso essas duas "artes" andem de mãos dadas há tanto tempo. Vejam sobre a Agitprop dos intelectuais bolcheviques. Vejam o Cidadão Kane, de Orson Welles, encarnando o magnata das media Randolph Hearst. Vejam as teorias e as aplicações de Goebbels que levaram o nacional-socialismo de Hitler ao poder na Alemanha. Vejam as relações entre Dick Cheney e George W. Bush com Rupert Murdoch. Para não estender demais a lista, vejamos Berlusconi, magnata das media e primeiro ministro da Itália. Cá, no Brasil, tirando o fato de que muitos dos veículos de comunicação pertencem a políticos, notamos que personagens das media buscam oportunidades também no campo da política.

Entretanto, o fato que nos interessa neste texto, é a capacidade de exercer a política e a comunicação com maestria, com "arte". Não podemos deixar de notar que os veículos de comunicação mais importantes do Brasil têm extrema competência em atingir esse patamar, essa condição de "arte". Há uma aparente infinita capacidade, nesses veículos, de gerar notícias, de produzir informação, tudo dentro do mais alto conceito de credibilidade, perante o público.

Tenho para mim que o maior patrimônio que uma empresa de comunicação pode ter é a credibilidade. Mesmo a menor empresa de comunicação, que é o profissional autônomo, necessita de credibilidade e perícia no seu ofício. A credibilidade fez os Hearsts, os Berlusconi, os Goebbels e os Murdoch. Sem credibilidade o homem de comunicação não alcança a sintonia necessária para que o público lhe reconheça com valor.

A credibilidade pode ser alcançada por meio da ética, como resultado do esforço e da consciência profissional, com responsabilidade, com dedicada honestidade, com a verdade. Mas a credibilidade também pode ser alcançada por meio da mentira. Vi e vivi situações em que pessoas absolutamente desconhecedoras de questões fundamentais ao ofício se apresentaram como profundos conhecedores, especialistas, com expertise verbal suficiente para impressionar os incautos, ingênuos e ignorantes. Vi, por exemplo, um "designer" vender a logomarca da Editora Globo para dois empresários que se consideram absolutamente "espertos" e "bem informados". Ao informar que estavam comprando gato por lebre, percebi que a credibilidade do "designer" era inabalável, a minha não. Depois que foi constatado que eu tinha razão, solicitaram outra logomarca. O "designer", finalmente, vendeu a logomarca da Rede Globo com uma pequena alteração: no lugar do retângulo recortado no centro da esfera maior, o cara pôs um triângulo. Para não ficar tão parecida com a logomarca da Rede Globo, o cara manteve os rasgos paralelos em diagonal na face da esfera, como havia na imagem da Editora Globo. Essa logomarca ainda é utilizada pela emissora que solicitou o trabalho do "designer".

Voltando ao problema da destruição de reputações numa campanha eleitoral, a credibilidade dos veículos de comunicação é quase inquestionável. O poder de persuasão sobre leitores, ouvintes e telespectadores é arrebatador, se aproxima do cenário profetizado por George Orwell, em 1984. Talvez seja este o nosso destino. É já bastante óbvio que a perda de credibilidade entre os políticos chegou a um nível em que, sem a imprensa, fazer política, e sobretudo campanha política, é impossível sem a credibilidade dos veículos de comunicação. Ao cidadão comum, a democracia é inacessível justamente por isso: os meios de comunicação lidam com os ricos e famosos. Os pobres são anônimos, ou são apenas os quase anônimos das páginas de mundo-cão. Mas isso não perturba a credibilidade da democracia que, possivelmente, caminha para a ditadura deslavada das classes hegemônicas, a classe dos ricos e famosos.

O que me despertou a vontade de escrever este hipertexto foi a leitura de um texto publicado pela Folha de São Paulo que reproduzo abaixo:

"Nem estudando, nem trabalhando. Mais de dois em cada dez jovens brasileiros entre 18 e 20 anos se encontravam nessa espécie de limbo em 2009, à margem da crescente inclusão educacional e laboral registrada no país em anos recentes, informa reportagem de Érica Fraga para a Folha (íntegra disponível para assinantes do UOL e do jornal). 
Essa geração "nem-nem" (tradução livre do termo ni-ni, "ni estudian ni trabajan", usado em espanhol) representa uma parcela crescente dos jovens de 18 a 20 anos. Eram 22,5% dessa faixa etária em 2001 e 24,1% em 2009 (o equivalente a 2,4 milhões de pessoas).
Nesse mesmo período, a taxa de desemprego no país recuou de 9,3% para 8,4%. Os dados são da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e foram levantados pelo pesquisador Naercio Menezes Filho, do Centro de Políticas Públicas do Insper.
Segundo especialistas, essa tendência é resultado de várias causas. Entre elas, paradoxalmente, o maior aquecimento no mercado de trabalho --que tem acirrado a competição-- e o aumento significativo de transferências do governo para famílias de renda mais baixa."(

Após ler o texto, refleti apenas por alguns segundos e cheguei à conclusão de que o texto passa uma informação duvidosa por meios artificiosos. A credibilidade do veículo chegou a um patamar em que já lhe é possível mentir. A tática goebbeliana de vencer uma verdade com mil mentiras já é desnecessária. Uma mentira se transforma em verdade quando a credibilidade é inquestionável. Por que a notícia da Folha é mentirosa? Ora, todos sabemos que jovens do sexo masculino nesta faixa etária têm mesmo dificuldade para se empregar. Todos estão alistados para o serviço militar e as empresas dificilmente os contratam com carteira assinada. Há empresas que assumem o risco de contratar jovens nessa idade, mas esse não é o procedimento das indústrias. Todos sabemos que o mercado informal, sem registro em carteira, oferece, no mais das vezes, possibilidades de ganhos superiores ao trabalho formal: um camelô ou um vendedor de hot dog ganha mais do que muitos empregados no comércio e no setor de serviços. Quanto ganha mesmo um atendente do McDonald´s?

O problema da matéria é indicar que "Segundo especialistas, essa tendência é resultado de várias causas. Entre elas, paradoxalmente, o maior aquecimento no mercado de trabalho --que tem acirrado a competição-- e o aumento significativo de transferências do governo para famílias de renda mais baixa". Assim, a matéria induz o leitor a acreditar que o bolsa-família cria desocupados. Anestesiado em sua capacidade de observar sua própria história de vida, o leitor esquece que passou pelo drama do desemprego quando jovem, e que esse desemprego era motivado pela situação indefinida em relação ao serviço militar. Absolutamente crente nos "especialistas" que a matéria menciona, o leitor não questiona o veículo: "quem são os especialistas, eles têm nome, em que são especialistas, onde se formaram?". Satisfeito com a matéria, o leitor não precisa buscar outras informações, o que sabe já é suficiente. Mas o leitor curioso não está ainda satisfeito. Por acaso, no mesmo veículo, encontra uma matéria que parece contradizer o panorama negativo que a primeira cria:

"O medo do desemprego nunca estava tão em baixa no país, segundo pesquisa da CNI (Confederação Nacional da Indústria). Para ela, o bom desempenho da economia aumentou a confiança dos brasileiros no emprego. O índice que mensura o medo caiu para 81,1 pontos em setembro deste ano, de acordo com a pesquisa trimestral divulgada nesta quarta-feira.
O índice de setembro, que recuou 1,5% em relação ao de junho, é o menor desde maio de 1996, quando começou a pesquisa, em que quanto menor a pontuação maior é a confiança na preservação do emprego.
"A queda na pontuação registrada em setembro é resultado do aumento do número de pessoas otimistas em relação ao emprego", afirma a pesqauisa. Em setembro, 55% dos entrevistados disseram não temer ficar sem trabalho. Foi o terceiro trimestre consecutivo em que mais da metade dos brasileiros afirmou não estar com medo do desemprego. Outros 30% disseram ter pouco medo e 15% afirmaram ter muito medo do desemprego.
Segundo o gerente-executivo da Unidade de Política Econômica da CNI, Flávio Castelo Branco, a avaliação otimista da população reflete as condições favoráveis do mercado de trabalho. "A economia retomou o crescimento e as taxas de desemprego das principais regiões metropolitanas estão entre as mais baixas da história", explica Castelo Branco.
Segundo ele, o Índice de Medo do Desemprego deve manter-se nesse patamar até o final deste ano e ao longo de 2011. Isso porque tudo indica que o ritmo de crescimento da economia continuará elevado, garantindo a expansão da oferta de empregos." (http://www1.folha.uol.com.br/mercado/813901-medo-do-desemprego-atinge-o-menor-patamar-historico-aponta-cni.shtml)

Opa! Parece que agora temos nomes, instituições com nome, especialistas com nome. Não se trata da mesma notícia escrita com outras tintas, obviamente. Mas o cenário geral, mais amplo, contraria o cenário particular de uma notícia cuja pesquisa será absolutamente falha, se não considerar a variável do alistamento e outras ainda. A falta de qualificação que assombra os jovens das classes mais pobres, vitimados pela ineficiência de uma educação sistematicamente sucateada, tende a levá-los tanto ao mercado de trabaho dos salários baixos e da falta de perspectiva profissional, quanto ao mercado informal. Alguns preferem uma carreira no submundo do crime.

Não acredito que o pesquisador do Insper tenha feito a mesma análise que a Folha apresenta sobre a sua pesquisa. Me parece que a matéria distorce as causas enquanto mostra os fatos. É uma operação quase sutil, para quem não estuda atentamente a comunicação. É uma forma de usar dados verazes para produzir uma mentira. A Folha se utiliza da credibilidade de notáveis jornalistas e articulistas que fazem parte do seu quadro para divulgar notícias mentirosas com intenções nitidamente políticas.

O problema que causa o desemprego entre os jovens produz toda uma cadeia de efeitos, entre os quais, a dificuldade do jovem prosseguir estudando depois de formar-se no nível médio. Posso afirmar, a partir da minha experiência pessoal, pelo que vivo e vejo: o problema é complexo e não envolve apenas política, mas ideologias de RH e empregadores, além de problemas econômicos nas comunidades carentes que fazem com que o jovem desempregado não tenha dinheiro para condução.

A união entre política e comunicação também tem mil faces, algumas positivas e outras negativas, algumas propositivas, outras nocivas. Políticos são eleitos pelo povo para trabalhar por melhorias para o conjunto da sociedade; no entanto, o que vemos é muito idiota eleito se transformar em "autoridade", o que configura o mais infeliz exercício de vaidade. E, quanto mais distante do povo que o elegeu, e mais próximo da casta de empresários e lobistas que o cercam, mais importante o político se sente. Na verdade, um bosta; não atende a sociedade, mas a "sociedade". E quanto mais atende a "sociedade", mais visilbilidade tem. Porque aparece em revistas de lobistas, jornais de lobistas, televisões de lobistas, rádios de lobistas. É um bosta, mas é sempre solicitado a dar opiniões, participar de julgamentos, emitir sentenças, passar final de semana na Ilha do bosta, eleger a miss, bradar em defesa da democracia e da credibilidade das instituições públicas e privadas.

É aí que a confusão está exposta de forma irreversível: o homem eleito pelo povo já não pertence apenas ao território da política, mas da comunicação. Ele é Relações Públicas de si mesmo e da sua casta; ele faz a Publicidade e a Propaganda de si mesmo e dos seus pares; ele é o Marketing mais formidável dos grandes projetos da "sociedade"; ele é o Garoto Propaganda do Partido e dos Ricos e Famosos. Por fim, ele é o grande Jornalista: ao mesmo tempo em que É a própria notícia, ele a divulga; e produz novas notícias, por meio da invenção e por meio da elaboração. O bosta torna-se um técnico competente nos domínios da comunicação. A política era apenas uma escada para a sua ambiciosa vaidade de tornar-se demiurgo. Já não sabe usar outro verbo, a não ser EU. Basta acrescentar três letras para a sua realização final, para a sua auto-consagração. Por meios muitas vezes obscuros, o bosta consegue fazer seguidores, aumenta seu poder. Torna-se tão influente que os profissionais de comunicação o temem, lhe obedecem, reproduzem no impresso o seu texto ideológico. Os profissionais temem perder o emprego, se calam, se escondem e guardam a ética numa gaveta bem tímida. Esperam que o bosta passe, com uma enchente, com um furacão ou com uma revolução.

Comunicação é política pública. Política partidária deve ser vista com desconfiança pelos profissionais de comunicação. Isso é uma exigência da ÉTICA. Mesmo sob o risco de perder o emprego. O pior vexame para um ser humano é perder sua credibilidade ao se subordinar a um bosta. Um ser humano sem credibilidade é um cu andando num mar de bostas. Para manter a credibilidade, de verdade, é preciso preservar a ética. A Folha não tem ética; a auto-afirmação recorrente da sua credibilidade é o maior sinal do fantasma de Goebbels na Barão de Limeira..

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