domingo, 10 de outubro de 2010

Pixografias I

Estou escrevendo a parte da minha dissertação que é sobre a pixação em São Paulo. Há alguns anos que venho pesquisando e acompanhando à distância a arte dos manos. A foto que ilustra esse texto foi obtida há pouco. Passei numa rua e vi essa marca caligráfica que considero expressão de fina competência artística. 



Já pixei. No início dos anos 80 eu e alguns amigos fomos parar no Primeiro DP de Santo André porque estávamos pixando. Meu pixo seria um tímido "Maluf é o meio para o fim", mas não deu tempo. Um camburão da civil, gentilmente, nos guiou até a delegacia. Não ficamos presos, o dono do imóvel não se apresentou para dar queixa. Passamos algumas horas na delegacia; "explicamos" que não estávamos fazendo pixo político, mas declarações de amor. O delegado ficou sensibilizado, nos deu uma canseira até amanhecer e nos liberou; era um homem romântico, nos tratou bem. Depois desse episódio muitos anos passaram até que minha atenção se volta novamente para a pixação.

O Prof. Dr. Artur Matuck me pediu que editasse um material que ele havia gravado em Salvador há alguns anos. Logo de cara, quando um dos rapazes que aparecem no vídeo pega a latinha de spray, seu gesto, o movimento do corpo, me chama à atenção. O resultado do gesto ficou expresso na parede: um grande nome em forma de círculo, com mais ou menos um metro e meio de diâmetro. Pode parecer banal, a pixação. No entanto, um olhar curioso que busque decifrá-la cuidadosamente será recompensado com uma história e com o rompimento das barreiras do pensamento comum.

Na minha opinião sincera, a pixação é arte, sim. Mas não qualquer pixação. A maioria das pixações que vejo é motivada pela emergência de uma necessidade ancestral de comunicar. É um impulso muito mais complexo do que normalmente deduzimos e por isso merece atenção dedicada. É um ato social; é um ato político; é um ato psicológico; é um ato antropológico; é um ato filosófico; é um ato, sobretudo, humano, de liberdade. É artístico, porque o ato é manifestação da senciência. Uso o termo "senciência" no sentido usado por Merleau-Ponty, quando analisa a obra de Cézanne. Nenhum pixador será Cézanne mas, como a arte do pintor de Aix-en-Provence, a pixação é, ao mesmo tempo, açoite e vítima de uma sociedade que não tolera a liberdade. É o mesmo Merleau-Ponty quem diz: "Se a liberdade é liberdade de fazer, é preciso que aquilo que ela faz não seja desfeito em seguida por uma liberdade nova.", no último capítulo da Fenomenologia da Percepção. Nossa sociedade adora desfazer, sob o pretexto de "fazer melhor". A burguesia se acha capaz de fazer sempre o melhor. Temos que reconhecer que a burguesia sabe fazer dinheiro melhor do que nós, proletários e pobres.

Essa pixação deixada por Falcão numa parede, em Cidade Tiradentes, extremo leste da capital paulista, mostra algo semelhante ao exercício de Sagat, o pixador de Salvador: a rigidez da escrita foi vencida pelo ato senciente, quando o corpo e a mente atuam em perfeita sintonia para criar uma expressão. O resultado é a forma orgânica da escrita estendida aos limites da possibilidade de decifração, como os calígrafos árabes fazem há séculos. É arte, da boa. Vandalismo? Sim, porque não é arte dos "patrícios", mas arte dos bárbaros e vândalos que estão sendo convidados a invadir o território das artes com seu sopro de vitalidade, de originalidade que brota da genuína experimentação. Cézanne era um vândalo, também.

O pixo é uma arte pública, não está restrita às ruas, e muito menos às bienais, galerias e museus. É uma arte fundamentalmente popular, acessível a todos, sem pagamento de ingresso. Está na rua. É da rua. É do povo. Tem muito joio e algum trigo. Há quem avalie o pixo pela atitude do pixador, há quem avalie pelo exercício estético, há quem avalie pelo seu potencial de despertar protestos.

Pode ser que a pixação acabe se transformando num grande negócio no mercado das artes, mas isso não a destruiria. A rendição da intelectualidade e da burguesia ao pixo é apenas uma recorrência, como ocorreu tantas vezes no passado com outras manifestações artísticas. Não macula, não ameaça a arte de pixar. É uma rendição com olhos que não passam da superfície de uma arte vacinada, que vem do paleolítico, antiga como o homem, anterior às civilizações. É arte rupestre para alguns, parietal para outros, graffito para outros mais; não importa que o nome mude, é sempre o mesmo impulso, a mesma parede, a mesma tinta, há dezenas de milhares de anos, variando apenas de acordo com cada época. Não há dúvida de que sobreviverá à nossa. Sempre sobrevive, como nas catacumbas romanas e nos muros e paredes de Pompéia. E é sempre por meio dos seus registros que as ciências e as artes desvelam o humano.

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