sábado, 9 de outubro de 2010

Oh, what a joy!



"I and I are going to Zion... If you follow head of churches you will never come at all... If you follow politicians you will never come at all...". Ouvi estas frases pela primeira vez num comercial de cigarros que foi amplamente veiculado na televisão brasileira na década de 1970. Quem tem mais 40 anos talvez se lembre. O diretor do comercial usou um trecho de uma cançao Niyabinghi, que é a verdadeira música rastafariana, gravada por Jimmy Cliff num álbum maravilhoso, "Give Thanx". Naquela época, o guitarrista Keith Richards passava férias na Jamaica e se apaixonou por esse gênero de música, do qual derivou a essência filosófica do reggae: amor, religião e política. A música Niyabinghi é uma permanência da ancestralidade cultural africana atualizada pela cultura contemporânea dos negros no Novo Mundo. Música da diáspora. Música com tambores que seguem o ritmo do coração; música que provoca aqueles arrepios que Martinho da Vila, falando de samba, diz que são a manifestação da africanidade em quem ouve.

Os tambores de "Bongo Man", cantada por Cliff, mexiam e ainda mexem com os sensores, com o coração e com o pensamento. Não posso deixar de lembrar que eram anos de ditadura, no Brasil e na América Latina. Na Jamaica e em muitos outros países, políticos importantes eram fantoches da CIA - penso que alguns ainda são. Muitos jovens regueiros de hoje não têm idéia do que ocorria na política daquele tempo, nem no Brasil, nem na América Latina, nem no Caribe, nem na África. Muitos jovens negros desconhecem por completo, ainda, a história do rastafarianismo, da formação das populações negras na América, das políticas sociais que excluem o povo negro, etc. Não são obrigados a saber, mas talvez pudessem tirar desse conhecimento algum benefício, porque não saber não significa não sentir. O reggae do século XXI é fraco, tímido, sem força política, sem história, sem filosofia e sem poesia. O consumo de ganja, no entanto, é forte, aumentou fantasticamente entre os jovens. Já não se consome ganja para "elevar a alma", mas para ser um careta boa praça, um simulacro de contraventor, ou simplesmente um viciado.

Não foi só o reggae que sofreu a influência nociva da indústria fonográfica e dos meios de comunicação de massa. O rock envelheceu. O hip hop sofre há muitos anos a corrosão que Afrika Bambaataa já advertia no seu precioso manifesto. O jazz estagnou-se, forçando Winton Marsalis a buscar em décadas passadas o elo perdido. A MPB foi soterrada pelo jabá e por um complicado sistema legal que privilegia os hitmakers. A música se desimcompatibilizou com a política, com a história, com as artes e, em troca disso, se beneficiou da expertise dos economistas e dos administradores de empresa. Sai a arte, entra o lucro.

Recebi um e-mail, há alguns meses, com uma música anexada. Não sou fã dos Stones, gosto, mas não me empolga. No e-mail, havia uma explicação que era uma gravação de um grupo Niyabinghi, com participação de Keith Richards. Gosto, sempre gostei, da guitarra de Richards, que traz uma pureza roqueira que só um guitarrista com a alma lavada no puro blues pode expressar. Acompanhando os Wingless Angels, sua guitarra é comedida, se ajusta à simplicidade pungente da música. Fiquei feliz em poder ouvir o poderoso tambor Nyabinghi em "Oh, what a joy!", depois de quase 30 anos passados da primeira audição de "Bongo Man". Na verdade, fiquei chocado, em estado de contrição, ouvindo a voz de Justin Hinds, a guitarra de Richards e o coro de pescadores.

Hoje, quis ouvir a música novamente. Precisava de uma mensagem de força, neste momento em que pouco tempo falta para o nascimento de Morena. O desemprego, a falta de dinheiro, a aflição que castiga a maior parte dos negros e mestiços brasileiros chegou para mim, novamente, no momento mais difícil. Serra e Dilma estão em campanha. Os mineiros chilenos estão ainda presos a 700 metros de profundidade. Em São Paulo, garoa e frio. Carol, em Santa Catarina, pelo telefone está mais amável hoje. Estou amargo. O canto de Justin Hinds com os Wingless Angels me faz viajar no tempo, na cultura, na história, na política, no passado, no presente e no futuro de Morena. Esses tambores Nyabinghi ressoam as diversas manifestações de Jah. Restauram o que nossa música perdeu: a autenticidade e a força de falar diretamente para o espírito e para o tino. São a resistência para suportar o tombo e levantar-se com segurança. Revigoram o axé, como diz Babatunde Lawal; o "n´tu", como diz Dilma de Melo Silva. A cultura dos negros me apaixona. Minha filha será negra, será Morena, e me apaixona. A família de Hinds é negra, e autorizou a publicação do álbum no site dos Wingless Angels. A generosidade, entre os negros, como essa da família Hinds, é a maior prova de que o culto da miséria é característica da sociedade burguesa.

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